“O Marinheiro” - Fernando Pessoa
- Sala de Leitura
- 7 de jun. de 2021
- 10 min de leitura
Semana de: 07/06/2021 a 18/06/2021
Professoras responsáveis: Altina Wagner da Silva e Filomena Aparecida Carballo Gadret
Objetivo Principal: incentivo a leitura por prazer.A Literatura é um potente instrumento de criar, transformar e melhorar realidades.
Habilidade: Fortalecer o desenvolvimento da fluência leitora e colocar o estudante no centro do processo leitor.
A dica desta quinzena ainda será nosso querido Fernando Pessoa, com sua obra “O Marinheiro”, que caíra nos vestibulares da Fuvest e Unicamp es erá contemplada no ENEM, também.

O MARINHEIRO

Movimento literário: Modernismo Português; Gênero: teatro
Fernando António Nogueira Pessoa (Lisboa, 1888 – Lisboa, 1935), Foi inventor da heteronímia, que compõe parte expressiva de sua obra, considerada como uma das ideias literárias mais relevantes do século XX. A peça O Marinheiro – drama estático em um quadro saiu originalmente em 1915 no primeiro número da revista vanguardista Orpheu, marco do modernismo português.
A peça se inicia em uma torre circular de um castelo antigo com quatro tochas aos cantos em que três mulheres velam o corpo de uma donzela vestida de branco, ao centro do cenário. Não há indicação de espaço ou tempo. Há uma janela voltada para um espaço de mar. O quadro acontece de noite, com um “resto vago de luar”, criando-se um clima misterioso, naturalmente simbólico, a partir desta cenografia.
Dessa concepção cênica decorre um diálogo entre as veladoras que vai até o raiar do dia. O diálogo é construído pela espera das veladoras, espera de um acontecimento que simplesmente não vem, por meio de frases alegóricas, como a fala inicial: “Ainda não deu hora nenhuma”, criando níveis de leitura para a peça. Um deles, de se notar, seria a notação política, a partir da afirmação da segunda veladora: “Todo este país é muito triste”, que assume um contorno referencial à crise cultural portuguesa, potência do século XV e XVI, que se torna, em um país marcado pela derrocada econômica e política, principalmente depois do Domínio Espanhol (1580-1640).
Nesse espaço de imobilidade, a segunda veladora relata um sonho que tivera com um marinheiro de terras distantes, que não consegue voltar para a própria pátria. Logo, diante dessa dificuldade, o marinheiro sonha ter vivido em uma pátria imaginada, e, ao tentar relembrar a verdadeira pátria de nascença, já não o consegue mais, ficando preso no próprio sonho. Desse modo, a pátria do marinheiro torna-se a pátria do sonho. A conclusão de que tudo é sonho faz com que as veladoras se diluam em uma única voz – pura linguagem – em que a própria consciência das personagens é dissolvida, sugerindo uma quinta pessoa na torre, que pode ser, em um viés metalinguístico, o próprio autor que dirige a fala e comanda, como uma força invisível, um sonho dentro de outro.
Por meio dessas ideias, possibilita-se a leitura da impotência humana, o ser humano como títere do desconhecido, propiciando um recorte existencial que beira o desespero e sinaliza o horror como instância última da peça.
Esse “teatro estático” encerra uma polissemia importante: por um lado, estático significa sem ação ou sem movimento; por outro, aponta para a ideia de êxtase, em um estado para fora de si, de natureza mística. É comum, portanto, no que se refere a essa vertente misteriosa, a associação com o Simbolismo, movimento literário que teve muita força no final do século XIX e que seguiu influenciando as primeiras décadas do século XX.

Fernando António Nogueira Pessoa, nascido em Lisboa em 1888, carrega, como escritor, a ideia de que a pluralidade identitária pode ser captada pela arte. Suas obras são amplamente conhecidas no mundo todo e, de fato, escrever literatura foi um dos seus grandes empreendimentos. Ele mesmo afirmou que “o ser poeta e escritor não constitui profissão, mas vocação”, como consta em nota biográfica elaborada em 1935 e reproduzida no livro O marinheiro, publicado em 2020 pela Editora da Unicamp, com introdução e notas de Marcos Lopes e Ana Maria Ferreira Cortês. O título está na lista obrigatória de leituras para o vestibular da Unicamp e esta edição será de grande ajuda para os estudantes, por apresentar uma minuciosa análise dos elementos e dos sentidos presentes no texto.
Esta obra traz um Fernando Pessoa dramaturgo pouco conhecido pelo público, que reconhece as habilidades do autor como poeta. O marinheiro é uma obra ímpar, não apenas na produção literária de Pessoa, mas também para o cenário da dramaturgia em geral, pois o autor parte do conceito de “drama estático”.
Segundo Lopes e Cortês, a construção do drama estático se dá pela imobilidade. O cenário da peça é o interior de um quarto circular com uma única janela aberta com vista para um oceano ao longe. Neste quarto estão presentes quatro das cinco personagens: uma donzela morta, estendida em seu leito, acompanhada de três veladoras sem nome. Todo o enredo acontece no diálogo entre as mulheres, que não sabem ao certo se o que estão vivendo é realidade ou sonho. O quinto personagem, o marinheiro, está presente apenas na fala das veladoras. A história está contida neste espaço circular e as ações estão limitadas às falas e pensamentos das três personagens vivas e presentes na cena, que acontece ao longo da madrugada..
A construção dos elementos básicos do enredo é o que determina o “drama estático” pessoano, largamente analisado e explicado na introdução deste livro. Na perspectiva analítica apresentada por Lopes e Cortês, a possibilidade do drama estático está na maneira como são construídos o tempo e o espaço, categorias narrativas indispensáveis para o teatro e reinventados por Pessoa.
“O texto dramático de Fernando Pessoa prega uma peça em nós, pois as personagens, ao não saberem se o que estão vivendo é realidade ou fantasia, também sugerem que duvidemos de nossos hábitos e nossas crenças a respeito do que é o tempo, o espaço e, por tabela, questionemos o que define nossa identidade pessoal: o nosso eu”.
Na ausência de ação, a peça centra-se em um trabalho reflexivo, de maneira que o “enredo dramático não constitui ação – isto é, onde as figuras não só não agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre deslocarem-se, mas nem sequer têm sentidos capazes de produzir uma ação.”
A riqueza analítica da introdução é completada pelas notas explicativas ao longo do texto. Temos, então, uma leitura que extrapola a simples admiração da subjetividade literária e possibilita o entendimento sistemático das estruturas de representação contidas no texto.
Lopes e Cortês afirmam que “a peça O marinheiro nos faz pensar na mais antiga das perguntas: quem somos? Somos alguma coisa?”. Assim, como afirmam os organizadores na Introdução, “é difícil, para não dizer impossível, ler a obra de Fernando Pessoa sem considerar que ela é uma conversa corajosa com as grandes questões transmitidas pela religião e pela filosofia”.
É obra ideal para professores e estudantes que se preparam para a prova do vestibular Unicamp. Mas também para todo amante da literatura.
Ao analisarmos a obra, podemos observá-la como um drama onde se revela o psicológico das personagens. Elas não possuem nomes, são designadas por Primeira, Segunda e Terceira, e se chamam por irmãs. A construção do ambiente é definida na didascália*. O espaço da narrativa é um quarto de um antigo castelo, onde as três velam outra mulher, como podemos observar no trecho a seguir:
Um quarto que é sem dúvida num castelo antigo. Do quarto vê-se que é circular. Ao centro ergue-se, sobre uma essa, um caixão com uma donzela, de branco. Quatro tochas aos cantos. À direita, quase em frente a quem imagina o quarto, há uma única janela, alta e estreita, dando para onde só se vê, entre dois montes longínquos, um pequeno espaço de mar. Do lado da janela velam três donzelas. A primeira está sentada em frente à janela, de costas contra a tocha de cima da direita. As outras duas estão sentadas uma de cada lado da janela. É noite e há como que um resto vago de luar. (PESSOA, 1913)
O roteiro começa com uma das irmãs conversando para romper com o silêncio que vaga no quarto e propondo que contem histórias do passado como uma distração.
PRIMEIRA VELADORA — Ainda não deu hora nenhuma. SEGUNDA — Não se pode ouvir. Não há relógio aqui perto. Dentro em pouco deve ser dia. TERCEIRA — Não: o horizonte é negro. PRIMEIRA — Não desejais, minha irmã, que nos entretenhamos contando o que fomos? É belo e é sempre falso…
Para passar o tempo, vão criando narrativas que nunca aconteceram com elas, mas que ao mesmo tempo criam dubiedade se poderiam ter acontecido algum dia, já que elas não possuem um relógio para ver as horas, o que as deixa desconfortáveis em manter o silêncio.
PRIMEIRA — Não dizíamos nós que íamos contar o nosso passado? SEGUNDA — Não, não dizíamos. TERCEIRA — Por que não haverá relógio neste quarto? SEGUNDA — Não sei… Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e misterioso. A noite pertence mais a si própria… Quem sabe se nós poderíamos falar assim se soubéssemos a hora que é? PRIMEIRA — Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo Dezembros na alma… Estou procurando não olhar para a janela… Sei que de lá se vêem, ao longe, montes… Eu fui feliz para além de montes, outrora… Eu era pequenina. Colhia flores todo o dia e antes de adormecer pedia que não mas tirassem… Não sei o que isto tem de irreparável que me dá vontade de chorar… Foi longe daqui que isto pôde ser… Quando virá o dia?…
Aos poucos, as personagens vão falando de um passado confundindo o espectador/leitor sobre o que é real e o que é invenção na vida delas. A SEGUNDA mulher conta para as outras duas que um dia sonhou com um marinheiro, mas que poderia ter acontecido daquela forma que aconteceu, o que deixa dúvidas se é uma invenção dela ou realmente um evento que aconteceu.
SEGUNDA — Vou dizer-vo-lo. Não é inteiramente falso, porque sem dúvida nada é inteiramente falso. Deve ter sido assim… Um dia que eu dei por mim recostada no cimo frio de um rochedo, e que eu tinha esquecido que tinha pai e mãe e que houvera em mim infância e outros dias — nesse dia vi ao longe, como uma coisa que eu só pensasse em ver, a passagem vaga de uma vela. Depois ela cessou… Quando reparei para mim, vi que já tinha esse meu sonho… Não sei onde ele teve princípio… E nunca tornei a ver outra vela… Nenhuma das velas dos navios que saem aqui de um porto se parece com aquela, mesmo quando é lua e os navios passam longe devagar…
A seguir, vemos a história do marinheiro sendo contada a partir de um sonho que a Segunda moça teve um dia. No trecho, ela conta que ao ver o náufrago em uma ilha, o observa construindo histórias de um lugar que nunca existiu, mas que ao criar as fantasias, ele acredita que está vivendo aquelas histórias para se afastar da solidão e do ócio.
SEGUNDA — Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por elas… Não vi se alguma vez pousavam… Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia ali… Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas… Cada hora ele construía em sonho esta falsa pátria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas e não reparando nas estrelas.
A pátria que a mulher diz que o marinheiro inventou, provavelmente remete a uma Portugal antes da crise política, que marcou a infância do autor. No final do século XIX, Portugal passou por muitas dificuldades. Uma delas foi o Ultimato inglês, de 1890*, onde a Inglaterra exigiu que o rei retirasse suas tropas da região do Xirê, na África. O período que Fernando Pessoa escreve a peça está situado na proclamação da República, em 1910.
SEGUNDA — Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, o marinheiro cansou-se de sonhar… Quis então recordar a sua pátria verdadeira…, mas viu que não se lembrava de nada, que ela não existia para ele… Meninice de que se lembrasse, era a na sua pátria de sonho; adolescência que recordasse, era aquela que se criara… Toda a sua vida tinha sido a sua vida que sonhara… E ele viu que não podia ser que outra vida tivesse existido… Se ele nem de uma rua, nem de uma figura, nem de um gesto materno se lembrava… E da vida que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e tinha sido… Nem sequer podia sonhar outro passado, conceber que tivesse tido outro, como todos, um momento, podem crer… Ó minhas irmãs, minhas irmãs… Há qualquer coisa, que não sei o que é, que vos não disse… Qualquer coisa que explicaria isto tudo… A minha alma esfria-me… Mal sei se tenho estado a falar… Falai-me, gritai-me, para que eu acorde, para que eu saiba que estou aqui ante vós e que há coisas que são apenas sonhos…
Ao passo que o marinheiro cria as narrativas para fugir da solidão, chega um dia em que ele se cansa de sonhar e não consegue mais lembrar de sua verdadeira história. O sonho do marinheiro representa a pátria que ele gostaria de ter e não a real. Assim, podemos interpretar o trecho como um momento saudosista de Fernando Pessoa.
Ao final, no raiar do dia, as irmãs se questionam sobre tudo o que falavam, tanto a ilha do marinheiro quanto o quarto com as veladoras.
SEGUNDA — Talvez nada disto seja verdade… Todo este silêncio, e esta morta, e este dia que começa não são talvez senão um sonho… Olhai bem para tudo isto… Parece-vos que pertence à vida?… PRIMEIRA — Não sei. Não sei como se é da vida… Ah, como vós estais parada! E os vossos olhos tão tristes, parece que o estão inutilmente… SEGUNDA — Não vale a pena estar triste de outra maneira… Não desejais que nos calemos? É tão estranho estar a viver… Tudo o que acontece é inacreditável, tanto na ilha do marinheiro como neste mundo… Vede, o céu é já verde… O horizonte sorri ouro… Sinto que me ardem os olhos, de eu ter pensado em chorar…
Não será tudo sonho? Esse era o medo criado pelas mulheres de não saberem se existem ou não. O marinheiro, que é “sonho de um sonho”, é fruto da imaginação da Segunda mulher que, por sua vez, é fruto da imaginação do poeta, que produz uma nova realidade. Essa construção do passado do marinheiro só passa a existir no momento de uma lembrança imaginária que se torna realidade quando é contada no presente.
TERCEIRA (numa voz muito lenta e apagada) — Ah, é agora, é agora… Sim, acordou alguém… Há gente que acorda… Quando entrar alguém tudo isto acabará… Até lá façamos crer que todo este horror foi um longo sono que fomos dormindo… É dia já. Vai acabar tudo… E de tudo isto fica, minha irmã, que só vós sois feliz, porque acreditais no sonho…
Na poesia de Pessoa, o mundo onírico é característica fundamental na criação poética do autor. Na obra, ele explora a temática questionando sobre o que é sonho e o que é realidade.
Leia o texto e faça um fichamento da narrativa, se perguntando o quanto tem de saudosismo do autor na história, relacionando com os acontecimentos em Portugal e analisando as três personagens. Ouça o podcast com o professor Eduardo Calbucci e faça um resumo das principais ideias. Acesse o material de apoio para tirar todas as dúvidas que surgirem.
● Didascália Acesso em: 14.11.2020.
● Ultimatum britânico a Portugal Acesso em: 14.11.2020.
● Sonho e criação na poesia de Fernando Pessoa Acesso em: 14.11.2020.

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